1. O Instituto Brasileiro de Direito Processual - IBDP, após longos debates e consulta ao Superior Tribunal de Justiça elaborou sugestão de projeto de lei visando a aplicação, também no âmbito do recurso especial, de técnica de julgamento dos recursos repetitivos semelhante à já adotada no Supremo Tribunal Federal (art. 543-B do CPC). Objetivo: atenuar a pletora de feitos em tramitação no STJ, permitir decisões iguais para lides iguais e possibilitar o cumprimento da promessa constitucional de julgamento em ‘tempo razoável’ e concessão de meios que garantam a ‘celeridade’ na tramitação dos processos - CF, art. 5º, LXXVIII.
A iniciativa foi bem sucedida, concretizando-se pela sanção da Lei nº 11.672, de 8 de maio de 2008, com vacatio legis de noventa dias, a qual acrescentou ao CPC o artigo 543-C.
2. Em resumo, pela nova sistemática, não mais serão remetidos ao STJ centenas, milhares de recursos especiais que versem a mesma questão de direito, obrigando a Corte a julgamentos ‘por atacado’, de inconveniência óbvia. Assim, em ocorrendo uma “multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica questão de direito”, o Presidente do Tribunal de origem admitirá apenas um ou mais recursos representativos da controvérsia, e determinará que os demais tenham seu andamento sobrestado, no aguardo da manifestação do Superior Tribunal de Justiça. O recurso ‘piloto’ será julgado com preferência sobre todos os demais feitos (exceto os que envolvam réu preso e os habeas corpus).
3. A lei ainda prevê - art. 543-C, § 2º - que, se o Presidente do Tribunal de origem não houver adotado a providência já mencionada, e concorrendo o pressuposto da existência de numerosos recursos de idêntica natureza pendentes no STJ (ou em vias de remessa ao STJ), possa nesta Corte o relator de um dos recursos adotá-la - certamente com a anuência dos demais integrantes do órgão julgador; determinará, então, que nos tribunais de segunda instância seja suspenso o processamento dos recursos “nos quais a controvérsia esteja estabelecida”, obviamente comunicando tal determinação aos demais integrantes do STJ (ou, se for caso, da Seção especializada).
Lembremos, desde logo, que a aceitação da providência implica mudança na competência interna para o julgamento – da Turma a competência é deslocada para a Seção especializada ou, se a matéria disser respeito a questão de maior abrangência, para o Plenário do STJ.
4. A fim de assegurar o mais amplo debate do tema por todos os eventuais interessados, o relator poderá, numa mesma oportunidade, despachar:
a) solicitando informações, a serem prestadas no prazo de quinze dias, aos tribunais federais ou estaduais, a respeito da tese objeto dos processos;
b) admitindo, pela relevância da matéria, a “manifestação de pessoas, órgãos ou entidades com interesse na controvérsia” (art. 543-C, § 4º), consoante norma regimental que venha a dispor sobre a divulgação do incidente processual e o prazo e forma de tal manifestação.
Recebidas as informações, transcorrido o prazo para a manifestação dos interessados em geral, e depois de vista ao Ministério Público pelo prazo de quinze dias, o relator examinará o ‘recurso piloto’ e pedirá sua inclusão “em pauta na Seção ou na Corte Especial”, sendo a todos os integrantes do órgão julgador remetidas cópias do relatório (art. 543-C, §§ 5º e 6º).
Aqui vale reiterar ponto relevante: como se trata de ‘recurso piloto’, e considerada a finalidade de unificação da jurisprudência no STJ e de orientação aos tribunais de segundo grau, o julgamento não será feito na Turma, mas sim será competente, em se cuidando de matéria sob especialização, a respectiva Seção; em se tratando de matéria de incidência geral, o julgamento será feito em Corte Especial.
5. Julgado o ‘recurso piloto’, e publicado o respectivo acórdão, surgem duas possibilidades (art. 543-C, §§ 7º e 8º) relativamente aos recursos especiais com andamento suspenso:
a) quando o (sobrestado) acórdão do tribunal de segundo grau houver adotado tese que venha a “coincidir com a orientação do Superior Tribunal de Justiça”, cada recurso especial sobrestado terá seu seguimento denegado na origem, não sendo portanto sequer necessário o exame dos respectivos pressupostos de admissibilidade (com a possibilidade, como veremos, de o recorrente agravar de instrumento);
b) caso o acórdão do tribunal do segundo grau haja sustentado tese que venha a “divergir da orientação do Superior Tribunal de Justiça”, então o recurso ordinário (a apelação, o agravo, os embargos infringentes) que dera origem ao acórdão será “novamente examinado pelo tribunal de origem”.
E estaremos, no azo, diante de alternativa:
b-1) o tribunal de origem, ao reexaminar o recurso ordinário em juízo de retratação, resolve revogar o anterior julgamento e proferir outro, adotando a orientação firmada no STJ; ou,
b-2) o tribunal de origem, ao reexaminar o recurso ordinário, resolve manter a sua decisão, embora divergente daquela firmada pelo STJ; neste caso, o recurso especial antes interposto (e cujo andamento fora sobrestado) retomará seu processamento, e a Presidência do tribunal procederá ao regular exame de seus pressupostos de admissibilidade.
6. Observa-se, no art. 543-C, § 7º, um equívoco de ordem técnica: o texto menciona que “os recursos especiais sobrestados na origem........(...)....II - serão novamente examinados pelo tribunal de origem na hipótese de o acórdão recorrido divergir da orientação do Superior Tribunal de Justiça”. Ora, os próprios ‘recursos especiais’ não podem, por evidentes motivos, ser ‘novamente examinados’ pelo tribunal de origem (que os não examinou...), para tanto, aliás, constitucionalmente incompetente.
O mandamento legal cumpre seja entendido no sentido de que o tribunal prolator do acórdão divergente da orientação do STJ deva proceder a um ‘juízo de retratação’, novamente examinando o recurso ordinário e podendo, visto que livre a vontade do juiz, operar ou não a reconsideração do julgado . Se o mantiver, o recurso especial subirá ao STJ, uma vez satisfeitos os respectivos pressupostos de admissibilidade.
Existe circunstância, no entanto, em que os próprios recursos especiais poderão ser “novamente examinados” no tribunal de origem. E isto quanto o recurso especial haja sido sobrestado “após” receber o juízo positivo de admissibilidade na Presidência do respectivo tribunal (antes, obviamente, da remessa dos autos ao STJ), vindo o STJ a decidir o recurso ‘piloto’ no mesmo sentido do julgamento feito no acórdão recorrido. Nestas hipóteses, ao Presidente do TJ ou do TRF cumprirá “reexaminar” a decisão monocrática, a fim de (supondo-se a perfeita identidade da questão de direito) denegar seguimento, em juízo de retratação, ao recurso anteriormente admitido.
7. E como fica a situação da parte que figurou como recorrida no recurso especial sobrestado, na hipótese em que o colegiado de segundo grau resolva, no juízo de retratação, modificar seu anterior entendimento, passando a adotar a orientação do STJ tomada no processo piloto (opção b-1, supra)?
Surgida esta nova situação processual, o recurso especial antes interposto pela parte A estará ‘prejudicado’, pois não mais vigora o acórdão impugnado por este recurso; e, diante do ‘novo’ acórdão, terá a parte B, antes vitoriosa e agora vencida, a faculdade de interpor seu recurso especial, no qual inclusive poderá argüir que aquele caso apresenta características que o distinguem da lide resolvida no processo piloto.
8. Pergunta-se, ainda, e é tema relevante: qual a conduta passível de ser adotada pela parte que haja interposto o recurso suspenso, caso o considere fundado em questão de direito não identificável com aquela questão de direito versada no recurso ‘piloto’?
Cumprirá, então, ao recorrente postular ‘reconsideração’ à Presidência do tribunal de segundo grau, cabendo-lhe demonstrar a diversidade de situações jurídicas, e assim rogar a retirada de seu apelo do rol dos sobrestados. Se o Presidente do tribunal de origem mantiver o sobrestamento, o recorrente aguardará a decisão do STJ, ressalvada evidentemente a faculdade de, se for caso, pleitear medidas cautelares a fim de prevenir eventual dano decorrente da demora.
Caso seu recurso especial venha, por fim a, ser considerado como ‘prejudicado’, e portanto com seguimento denegado, lhe é facultado interpor agravo de instrumento ao STJ (CPC, art. 544), e nesta oportunidade terá o ônus de comprovar a ‘distinção’ antes desconsiderada.
9. O § 9º do novo art. 543-C dispõe no sentido de que o STJ e os tribunais de segunda instância “regulamentarão, no âmbito de suas competências, os procedimentos relativos ao processamento e julgamento do recurso especial nos casos previstos neste artigo”. Assim, por exemplo, é provável que os recursos especiais interpostos de acórdãos contrários à orientação fixada pelo STJ e apesar disso ‘mantidos’ pelo tribunal de origem, venham a ser apreciados liminar e diretamente pela Presidência do STJ, tal como atualmente já ocorre, por via de previsão interna, com os Agravos de Instrumento.
A respeito, o STJ editou a Resolução nº 8, de 07.08.2008 (revocatória da Resolução nº 07, de 14.07.2008).
10. Como dispõe o art. 2º, a Lei 11.672/2008 aplica-se “aos recursos já interpostos por ocasião de sua entrada em vigor”. Impende observar que a lei não institui nem extingue recursos, e sim regulamenta o ‘procedimento’ a ser adotado, em determinados casos, pelo recurso especial. Incide, pois, o princípio da imediata aplicação das leis processuais, não ocorrendo direito adquirido a formas processuais: “Quanto ao procedimento cabível, inclusive para o julgamento do recurso, não há dúvida de que se subordina, desde a respectiva entrada em vigor, às prescrições da lei nova” (Barbosa Moreira, Comentários ao CPC, Forense, v. V, 13ª ed., 2006, nº 150, p. 270; Humberto Theodoro Jr., Curso de Direito Processual Civil, Forense, v. I, 44ª ed., 2006, nº 578, p. 706). Destarte, ao término da vacatio de 90 dias, os relatores dos recursos especiais ‘repetidos’ e pendentes de julgamento no STJ já terão podido usar da faculdade prevista no novel art. 543-C, § 2º .
11. Estas considerações sobre a nova lei resultam de exame ainda necessariamente superficial de suas muitas implicações. Outras questões surgirão ao embate das vicissitudes da prática forense, e terão de ser resolvidas no sentido mais conveniente à eficiência do processo, visto como instrumento para a justa composição das lides em tempo razoável.
12. Por fim, anotemos que com seis meses de vigência, o novo sistema já está produzindo bons resultados. Assim, no segundo semestre de 2008, o STJ recebeu 19.990 recursos especiais, quantidade bem inferior à registrada no mesmo período do ano anterior, que fora de 32.202 (queda de 38%). Ao todo, 72 recursos já foram indicados (em 15.02.2009) para julgamento pelo novo rito: a 1ª Seção indicou 38 recursos piloto; na 2ª Seção 14 processos foram apontados como repetitivos; a 3ª Seção arrolou 18 casos e na Corte Especial 2 recursos piloto aguardam julgamento. Como precisamente disse o Presidente do STJ, Min. Cesar Asfor Rocha, busca-se hoje, em todos os países do mundo, a segurança jurídica, acrescentando que com a globalização dos negócios não mais existem empresas absolutamente nacionais; assim, a benefício da economia nacional, “os investidores precisam saber como o Judiciário de um país decide determinado tema”. O Min. Luiz Fux, da 1ª Seção, sublinhou que “o cidadão comum não entende como causas iguais possam receber soluções diferentes”.
Ministro aposentado do STJ. Presidente do Conselho do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. Advogado.